terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Caloi vermelha

Morar em apartamentos fez do carro o meu caminho para o jardim. Quando pequeno, odiei a troca de uma Variant por um Passat. Na Variant tinha um imenso playground acima do motor, que ficava atrás, onde uma coberta velha servia de piscina. Mergulhava em brinquedos, em imaginação. As casas passavam devagar pela janela. Podia fantasiar em como subiria naquela árvore, ou descobrir antes dos outros onde estava escondida a última criança a ser encontrada no esconde-esconde.

Não havia tantos acidentes, não havia cinto de três pontos, nem mesmo porta-copos. Os motoristas não eram multados por andar sem cinto, nem mesmo por abrir a térmica e servir um chá gelado para o filho brincalhão lá no fundo do carro. A Variant era imensa. Minha pracinha automotiva era o único motivo de aceitar viagens longas. Não me preocupava se faltava muito para chegar. O caminho era meu primeiro destino.

Costumávamos visitar meus avós paternos em Pantano Grande, um lugar que ainda não tinha luz elétrica, chuveiro, gás ou telefone. Ao menos na casa dos meus avós era assim. O piso de madeira esquentava no inverno, e mantinha a noite fresquinha no verão. Lá eu acordava com os sons mais nítidos da minha memória. O crepitar da lenha e a dança das panelas e chaleiras na chapa do fogão. Acordava com o perfume da minha avó paterna. O perfume de erva doce do único chá registrado em cartório. O chá da Vó Cema. As folhas e sementes de erva doce eram arrancadas cedo da manhã, e chegavam na cozinha ainda orvalhados. Eu achava que o pão também gostava daquele perfume. Fui saber adulto que as sementes encontravam o trigo antes de assar. Sempre pensei que o pão absorvia aquele gostinho por morar perto da chaleira.

Minha bicicleta não tinha marchas. Mas tinha um registro de torneira bem no meio, uma torneira branca que quando aberta dobrava a bicicleta ao meio. Uma Caloi vermelha. O barulho das molas do banco ajudavam a disfarçar a falta de óleo na correia.

Minha Caloi foi a responsável pelo elo com meu pai. Só poderia pedalar se meu pai estivesse por lá. A cada duas voltas na casa ele já aparecia na escada com sua maleta de ferro.

- Já furou?, perguntava ele.
- Ainda não!!

Na terceira volta ele nem perguntava. Já estava na sombra do cinamomo com a maleta aberta. Virava a bicicleta, recortava os remendos com perfeição e em poucos instantes já estava enchendo os pulmões do pneu de ar.

- Pronto!
- Brigado, pai!

Em pouco tempo o pneu voltava a furar. Meu pai não pensava duas vezes antes de sair da roda de chimarrão para mais uma cirurgia na borracha.

- Pronto! Agora cuida pra não furar novamente!, dizia ele sorrindo.

Ele mesmo sabia que eu não iria cumprir aquele pedido. Que logo estaria de volta, com o pneu lambendo o chão. No terceiro ou quarto remendo eu desistia. Deixava a bicicleta encostada na árvore recuperando o fôlego, e achava uma nova distração.

- Não vou mais andar de bici, tá pai?

Ele sorria aliviado, mas mesmo assim perguntava se eu não queria que ele arrumasse.

- Pode ser depois, pai.

Eu sabia que aquela noite, quando voltássemos para a capital, a bicicleta estaria novamente com os pneus cheios. Cheios de ar, remendos e histórias. Cheio como o meu peito ao falar do meu pai.

5 comentários:

  1. nossa.. muito lindo, até nem tenho comentários para tão lindas palavras

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  2. Bicicleta de pobre é brabo, heim?! ahsiuahsiuahsuhaisuh
    Lindo o texto e legais as lebrmças que tu tens... eu não lembro muito de quando eu era pqna, meu cérebro entrou em curto e está assim até hoje...

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  3. Agora sim o título ficou bom!
    Viu só como os conselhos da sua editora aqui fazem bem?
    Ótimo texto viu?! Parabéns.

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  4. Querido mano: ler este lindo texto foi o mesmo que relembrar um capítulo da minha infância. Cada detalhe relatado era por mim sentido como se fosse eu quem tivesse vivido aquele momento. Os sons, os cheiros, enfim meus sentidos se aguçaram e meu coração se encheu de grandes e boas recordações.Ah nossos queridos avós, que saudades daquele aconchego. É estranho ler uma história que eu também vivi tão rica de detalhes contada por outra pessoa que também a viveu, o ruim foi sentir muita vontade de que tivéssemos tido a oportunidade de vivermos ela juntos, mas enfim, não foi possível!!! Beijos da tua irmã que muito te ama, com carinho Fabi.

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