Comissárias de bordo possuem um dos trabalhos mais sinceros do mercado. Ganham para repetir sempre a mesma farsa. São o próprio tapete vermelho, sempre impecáveis para receber todos os tipos de sapatos. Elas acordam a cada dia em um hotel diferente (mesmo que todos eles sejam iguais), levantam-se e descobrem no vapor do banho o tamanho da saudade que estão de casa. Imaginam recados apaixonados no espelho e desistem de tanta realidade na TV. Colocam o uniforme lindo e desconfortável e voltam a encarar o espelho. É hora de vestir a maquiagem de noite bem dormida e sentir-se indo para uma festa, mesmo que seja cedo da manhã. A maquiagem de uma comissária é carregada por servir também de escudo. Um pouco de sombra esconde a menina e faz nascer a mulher para mais uma jornada.
Neste texto em particular, a personagem de bordo surgiu de uma série de situações que culminaram no fato dela não estar mais a trabalho, e o lugar ao meu lado no avião estar vago. Senti que ela não precisava conversar. Precisava apenas saber que poderia, se quisesse. Isso ficou claro pouco tempo depois, quando ela se encostou de lado na poltrona, virada para mim. Uma daquelas raras situações onde tu sabes que podes confiar na pessoa, mesmo sem saber nada sobre ela. Sorrisos pequenos não sabem mentir.
Mesmo fora de horário de trabalho, mas ainda de uniforme, sabia que estava sendo observada pelos colegas da companhia. Iria desembarcar pela porta de trás, pela escada de serviço, e eu pela frente, como os demais passageiros. A escada de serviço não chegou, e fomos obrigados a seguir juntos até a esteira das malas. Quantas vezes no dia um “erro logístico” não te coloca em situações completamente inesperadas? Quantas vezes tu estás tão introspectivo que perde a chance de perceber isso? Quantas?
Ficamos em silêncio esperando a bagagem, sem saber direito o que estava acontecendo. Não imagino de onde ela estava vindo, ou para onde iria no dia seguinte. Mas pude, naqueles instantes, perceber que ela se sentia em casa. Tirei minha mala da esteira e larguei aos pés. Ela pegou a dela pouco depois, e se aproximou.
- Oi!
- Oi...
Estávamos em casa.
P.S: “Se não houver mulher no teu texto, não é um texto teu, Rodrigo.”, é o que algumas vezes já ouvi. E concordo. Não consigo pensar num texto só meu. Acho solitário demais. Sempre preciso dividir, e é aí que as personagens surgem...
terça-feira, 7 de junho de 2011
domingo, 20 de março de 2011
Dia perfeito...
Algo me acordou cedo naquela manhã de domingo. Não tinha dormido tarde, mas não lembro da última vez que o relógio marcava menos de 2h para eu desistir das luzes. Era cedo, mas não estava cansado. Estava surpreso pelo perfume de café pela casa, com as cortinas filtrando o sol feito coador. Preciso de duas coisas para ter certeza de que o dia começou: a caneca colorida com o café, e a toalha jogada na cama.
Não ouvia os carros passando pela rua, e até mesmo os pássaros abandonaram as antenas para encontrar os frutos em alguma árvore por aí. Quando cheguei na cozinha, ela sorriu abraçando uma caneca em cada uma das mãos. Não conseguiria imaginar cena mais perfeita. Uma noite só se completa com o bom dia. Mas ela não falaria nada. Sabe do valor do silêncio de um abraço onde o pescoço é mais importante do que as costas.
Alcançou o café e tomou o primeiro gole.
- Bom dia...
Se virou para escolher uma música. Não demorou, pois eram as mesmas que tocavam quando fomos dormir. Ficou claro que a noite não havia terminado. Mesmo com o sol, continuávamos cúmplices da escuridão. Alguns goles depois, consegui encontrar as primeiras palavras:
- Tu estás linda...
Ela não respondeu. Sabia que eu não uso os elogios para agradecer. Não uso esperando qualquer recompensa. Arrumou o cabelo, se apoiou no balcão, e me olhou. Parecia folhear mentalmente a agenda da noite adolescente que tinha vivido. Pelo olhar, pude passear pelas lembranças dela. Não existe cumplicidade maior do que emprestar as lembranças sem esperar que sejam devolvidas.
Com as canecas vazias, ela pegou minha mão e foi para a janela. Olhava tudo, sem olhar para nada.
- Hoje, é para lá que nós vamos.
- Onde?
Se virou me puxando para perto, e me beijou.
Se afastou um pouco e perguntou: Vamos? Apontou para a máquina fotográfica, e pegou a velha toalha de praia que sempre colocávamos no carro quando não sabíamos para onde iríamos. Enchemos a térmica com água, separamos alguns CDs e fechamos a porta de casa com o melhor planejamento que um dia perfeito precisa ter: nenhum.
Não ouvia os carros passando pela rua, e até mesmo os pássaros abandonaram as antenas para encontrar os frutos em alguma árvore por aí. Quando cheguei na cozinha, ela sorriu abraçando uma caneca em cada uma das mãos. Não conseguiria imaginar cena mais perfeita. Uma noite só se completa com o bom dia. Mas ela não falaria nada. Sabe do valor do silêncio de um abraço onde o pescoço é mais importante do que as costas.
Alcançou o café e tomou o primeiro gole.
- Bom dia...
Se virou para escolher uma música. Não demorou, pois eram as mesmas que tocavam quando fomos dormir. Ficou claro que a noite não havia terminado. Mesmo com o sol, continuávamos cúmplices da escuridão. Alguns goles depois, consegui encontrar as primeiras palavras:
- Tu estás linda...
Ela não respondeu. Sabia que eu não uso os elogios para agradecer. Não uso esperando qualquer recompensa. Arrumou o cabelo, se apoiou no balcão, e me olhou. Parecia folhear mentalmente a agenda da noite adolescente que tinha vivido. Pelo olhar, pude passear pelas lembranças dela. Não existe cumplicidade maior do que emprestar as lembranças sem esperar que sejam devolvidas.
Com as canecas vazias, ela pegou minha mão e foi para a janela. Olhava tudo, sem olhar para nada.
- Hoje, é para lá que nós vamos.
- Onde?
Se virou me puxando para perto, e me beijou.
Se afastou um pouco e perguntou: Vamos? Apontou para a máquina fotográfica, e pegou a velha toalha de praia que sempre colocávamos no carro quando não sabíamos para onde iríamos. Enchemos a térmica com água, separamos alguns CDs e fechamos a porta de casa com o melhor planejamento que um dia perfeito precisa ter: nenhum.
segunda-feira, 7 de março de 2011
de novo...
Talvez eu já tenha perdido a grande chance da minha vida. Tenha deixado a pessoa certa partir ou eu mesmo tenha partido na hora errada. Tenha fechado portas sem ter tido a coragem de pular pelas janelas. Mas, e daí? Achas que eu tenho tempo para ficar me lamentando? Sinceramente, isso não me serve.
Acho que as pessoas andam ansiosas demais. Nervosas demais. Criam o perfil de ocupadíssimas para justificar tantos erros. São capazes de deixar uma chance passar só porque estavam ocupadas demais discutindo sobre a demora da fila no supermercado. Preferem reclamar eternamente do carro quebrado antes de arriscar uma carona.
Tudo leva o tempo que precisa levar. Desde que tu te permitas estar leve. Pode ser que tu não entendas tudo na hora, mas isso não significa que não esteja certo, certo? Vai fazer mesmo tanta diferença fechares a cara e ficar reclamando do universo? Pra ti, eu diria: vá se benzer!
Penso assim: se tu arriscaste, as coisas terminaram antes do que imaginavas que deveriam, então... Vais fazer algo para mudar isso? Ok, te apoio. Não vais? Ok, te apoio. Vais ficar se lamentando? Ok, sai daqui.
Não faço parte deste time. Posso mesmo ter afastado alguma chance plena. Mas tenho a nítida convicção de que não foram as últimas. Nada me convence de que o melhor já passou. Se fosse assim, não existiriam chefs de cozinha misturando peras com roquefort só para arriscar um novo sabor. Enquanto as possibilidades existirem, existe em mim a inquietação.
Não significa que não tenho limites. Significa apenas que preciso de limites novos a cada dia. Já aprendi a lidar com os meus. Não são mais novidade. Então, o que eu preciso agora é a chance de me perder nos teus.
Acho que as pessoas andam ansiosas demais. Nervosas demais. Criam o perfil de ocupadíssimas para justificar tantos erros. São capazes de deixar uma chance passar só porque estavam ocupadas demais discutindo sobre a demora da fila no supermercado. Preferem reclamar eternamente do carro quebrado antes de arriscar uma carona.
Tudo leva o tempo que precisa levar. Desde que tu te permitas estar leve. Pode ser que tu não entendas tudo na hora, mas isso não significa que não esteja certo, certo? Vai fazer mesmo tanta diferença fechares a cara e ficar reclamando do universo? Pra ti, eu diria: vá se benzer!
Penso assim: se tu arriscaste, as coisas terminaram antes do que imaginavas que deveriam, então... Vais fazer algo para mudar isso? Ok, te apoio. Não vais? Ok, te apoio. Vais ficar se lamentando? Ok, sai daqui.
Não faço parte deste time. Posso mesmo ter afastado alguma chance plena. Mas tenho a nítida convicção de que não foram as últimas. Nada me convence de que o melhor já passou. Se fosse assim, não existiriam chefs de cozinha misturando peras com roquefort só para arriscar um novo sabor. Enquanto as possibilidades existirem, existe em mim a inquietação.
Não significa que não tenho limites. Significa apenas que preciso de limites novos a cada dia. Já aprendi a lidar com os meus. Não são mais novidade. Então, o que eu preciso agora é a chance de me perder nos teus.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
Metades...
Descobri no silêncio de uma poltrona de jardim, algum tempo depois, que não existe amor à segunda vista. Sei que pode acontecer, que de repente aquela tua colega de trabalho se torna atraente, percebes que os papos são bons, que o intervalo do almoço poderia durar um pouco mais. Mas não acho que esta seja a regra.
A regra, para mim, é que o amor é violento. Acontece de cara, imediato, sem tempo para aquela fase chata da paixão. Se tu já te apaixonaste, pare e pense comigo: A pessoa era incrível, te cativava, te deixava sem sono, te fazia querer sempre mais... Até aí, tudo bem. O problema é que paixão sempre caminha de mãos dadas com a razão. Chega um dia em que as coisas ganham o sabor de um café esquecido, e a relação termina. Tem gente que ainda tenta requentar... (preciso dizer algo?).
Sim, penso diferente de, sei lá, 99% dos humanos (vivos ou não). Mas é simples. Amor não te dá tempo para pensar. Não dá tempo para desejar. As coisas simplesmente precisam acontecer, e tu vais simplesmente fazer. Não vais pensar em como faria. Isso seria a tal “paixão”... Vais fazer, e ponto. Vais viver o sentimento, apostar no escuro ganhando mesmo quando os números sorteados forem outros.
Amor de verdade é quando subornamos a razão para que ela fique quieta. Se mesmo assim ela não parar, mandamos calar a boca e pronto. Ninguém sabe mais do que eu sinto do que eu mesmo. Se isso parece ser tão egoísta, tão primeira pessoa, é porque é! Quem esta sempre à procura da sua metade é apenas meio procurando. Prefiro me entregar inteiro. Me declarar culpado antes da abertura do processo.
“Mas pode ser que assim dê tudo errado!”. E daí? Quem disse que o para sempre é o que me interessa? Quem inventou que “para sempre” é um valor mensurável? Pense bem... Daqui a 100 anos é muito provável que ninguém que tu conheças esteja vivo. Na verdade, ninguém mais estará. Nenhum dos 7 bilhões que aqui, hoje, estão. Nem mesmo eu. Nem mesmo você.
Então, me desculpe se não tenho mais tempo para viver metades.
A regra, para mim, é que o amor é violento. Acontece de cara, imediato, sem tempo para aquela fase chata da paixão. Se tu já te apaixonaste, pare e pense comigo: A pessoa era incrível, te cativava, te deixava sem sono, te fazia querer sempre mais... Até aí, tudo bem. O problema é que paixão sempre caminha de mãos dadas com a razão. Chega um dia em que as coisas ganham o sabor de um café esquecido, e a relação termina. Tem gente que ainda tenta requentar... (preciso dizer algo?).
Sim, penso diferente de, sei lá, 99% dos humanos (vivos ou não). Mas é simples. Amor não te dá tempo para pensar. Não dá tempo para desejar. As coisas simplesmente precisam acontecer, e tu vais simplesmente fazer. Não vais pensar em como faria. Isso seria a tal “paixão”... Vais fazer, e ponto. Vais viver o sentimento, apostar no escuro ganhando mesmo quando os números sorteados forem outros.
Amor de verdade é quando subornamos a razão para que ela fique quieta. Se mesmo assim ela não parar, mandamos calar a boca e pronto. Ninguém sabe mais do que eu sinto do que eu mesmo. Se isso parece ser tão egoísta, tão primeira pessoa, é porque é! Quem esta sempre à procura da sua metade é apenas meio procurando. Prefiro me entregar inteiro. Me declarar culpado antes da abertura do processo.
“Mas pode ser que assim dê tudo errado!”. E daí? Quem disse que o para sempre é o que me interessa? Quem inventou que “para sempre” é um valor mensurável? Pense bem... Daqui a 100 anos é muito provável que ninguém que tu conheças esteja vivo. Na verdade, ninguém mais estará. Nenhum dos 7 bilhões que aqui, hoje, estão. Nem mesmo eu. Nem mesmo você.
Então, me desculpe se não tenho mais tempo para viver metades.
sábado, 19 de fevereiro de 2011
Simples assim.
Muito fácil se apaixonar. Basta ter um pouco menos de bom senso, e um pouco mais de curiosidade.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
18 anos.
Odeio quem escreve sempre querendo dar lições de moral. Moral, esta tal palavrinha que não se desgruda da cívica nas lembranças de colégio. Não acredito em moralidade imposta. Não acredito em leis. Não acredito em ninguém que tenha me dito que o melhor da vida já passou. Se tu não estiveres enfermo, numa cama de hospital, tomado de medicações e aparelhos, não me diga que o melhor já passou. Se tu não estiveres nestas condições, e mesmo assim me disseres isso, é nesta mesma cama que eu vou te imaginar.
As pessoas estão velhas. Muito velhas. Imorais.
Tive a sorte de viver com minha avó até seus oitenta e poucos anos. Ela nasceu pobre, se divertiu com farinha, manteiga e açúcar enquanto outras crianças compravam chocolates nas mercearias. Perdeu o marido muito cedo, com uma filha recém nascida nos braços, e tinha um quartinho nos fundos do pátio da irmã para chamar de lar.
Disse isso tudo para concluir uma única coisa. Destes tantos anos que pude conviver com ela, não lembro de um único sequer em que ela não tenha começado o dia com um sorriso. Com o prazer no rosto pelo simples dividir de uma refeição. Com o carinho que tinha por qualquer ser humano. Ela não tinha tempo para perder. Ela nos deixou cedo, mas não sem antes dizer que a vida tinha valido a pena. Morreu sem envelhecer.
É este o exemplo que eu tenho. Tão forte que provavelmente esteja no meu código genético. Não sou um falso modesto, sou feliz. E ponto. Simples assim. E estou longe de ter tudo o que quero. Tenho o que preciso, e sempre quero mais...
Então não me culpe se me irrito com a tua falta de fome pela vida. Pela raiva que sinto quando te escuto dizendo que “não posso fazer mais nada”, ou “vou ter que me conformar que vai ser sempre assim”. Poxa, f*da-se tu e tuas idéias limitadas sobre o que é ser feliz. De verdade! Agora posso culpar minha genética e dizer: antes dos 80 e poucos anos, não pretendo deixar de ter dezoito.
As pessoas estão velhas. Muito velhas. Imorais.
Tive a sorte de viver com minha avó até seus oitenta e poucos anos. Ela nasceu pobre, se divertiu com farinha, manteiga e açúcar enquanto outras crianças compravam chocolates nas mercearias. Perdeu o marido muito cedo, com uma filha recém nascida nos braços, e tinha um quartinho nos fundos do pátio da irmã para chamar de lar.
Disse isso tudo para concluir uma única coisa. Destes tantos anos que pude conviver com ela, não lembro de um único sequer em que ela não tenha começado o dia com um sorriso. Com o prazer no rosto pelo simples dividir de uma refeição. Com o carinho que tinha por qualquer ser humano. Ela não tinha tempo para perder. Ela nos deixou cedo, mas não sem antes dizer que a vida tinha valido a pena. Morreu sem envelhecer.
É este o exemplo que eu tenho. Tão forte que provavelmente esteja no meu código genético. Não sou um falso modesto, sou feliz. E ponto. Simples assim. E estou longe de ter tudo o que quero. Tenho o que preciso, e sempre quero mais...
Então não me culpe se me irrito com a tua falta de fome pela vida. Pela raiva que sinto quando te escuto dizendo que “não posso fazer mais nada”, ou “vou ter que me conformar que vai ser sempre assim”. Poxa, f*da-se tu e tuas idéias limitadas sobre o que é ser feliz. De verdade! Agora posso culpar minha genética e dizer: antes dos 80 e poucos anos, não pretendo deixar de ter dezoito.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
Epígrafe do fim
As paredes suavam frio. Um choque térmico entre o chegar da noite e o calor de uma tarde inteira sob o sol. Não tinha como suportar aquele ambiente sem ligar o ar condicionado no máximo. As peças de ferro, soltas e enferrujadas pela força dos anos, batiam e arranhavam como unhas no aço. O barulho era úmido. Gelado.
Ela largou a sacola de roupas no chão, e fez a cama com cuidado. Esticou o lençol e dobrou a pequena colcha para logo se cobrir. Queria proteger mais os olhos do que o próprio corpo. Sabia que algo muito errado acontecera naquele lugar.
Do quarto, a visão era a de um longo corredor. Escuro, habitado apenas pela solidão de uma mariposa voando em círculos. No final, uma porta de madeira guardava o elevador. Ela fechou os olhos por detrás do lençol, num piscar de tempo suficiente para que duas meninas de vestido sépia aparecessem paradas, fitando a porta do elevador. Imóveis. Os cabelos longos voavam um vento de outro lugar.
Não podia mais esconder dela o que eu sabia. O problema é que não poderia contar tudo. Na verdade, naquela hora, meu medo não me deixaria dizer absolutamente nada. Sabia do acidente. Sabia do coma. Sabia demais.
Segurei sua mão, e ela entendeu o que precisávamos fazer.
Levantamos, e a nossa única arma era aquela lanterna pesada. A bateria descarregada não permitiria iluminar mais nada, mas tinha peso suficiente para ser arremessada. Caminhamos pelo corredor ao lado, nos afastando em silêncio das meninas que ainda fitavam o elevador. Cada passo nos aproximava mais das conversas no quarto ao lado. Pela porta entreaberta, pudemos ver aqueles dois médicos. Um deles desligou o telefone, se apoiou na mesa empoeirada e confidenciou: não teríamos mais chances.
Entendemos finalmente que aquilo era um hospital. Ou um dia fora. As macas quebradas, extintores pelo chão, e o zumbido das luzes em azul.
Precisávamos de uma saída. Uma grade parecia guardar uma antiga saída de incêndio, e resolvemos tentar. Perto dali, uma menina que nos observava em um dos quartos sussurrou perguntando se poderia vir conosco. Logo éramos três. Cúmplices do medo.
Não consigo lembrar como conseguimos chegar ao térreo. Entre a sujeira do saguão de entrada, corpos deitados pelo chão eram as únicas testemunhas de que estávamos vivos. A menina que nos acompanhava foi a primeira a sair do prédio. Tão rápido ela pisou na rua, um grito: “Nãooooooooo!”.
Tudo se passou em uma única noite. Muitos anos depois de tudo. Tempo suficiente para entender que aquele era o lugar onde estivemos logo depois do acidente. O último lugar onde respiramos.
Ela largou a sacola de roupas no chão, e fez a cama com cuidado. Esticou o lençol e dobrou a pequena colcha para logo se cobrir. Queria proteger mais os olhos do que o próprio corpo. Sabia que algo muito errado acontecera naquele lugar.
Do quarto, a visão era a de um longo corredor. Escuro, habitado apenas pela solidão de uma mariposa voando em círculos. No final, uma porta de madeira guardava o elevador. Ela fechou os olhos por detrás do lençol, num piscar de tempo suficiente para que duas meninas de vestido sépia aparecessem paradas, fitando a porta do elevador. Imóveis. Os cabelos longos voavam um vento de outro lugar.
Não podia mais esconder dela o que eu sabia. O problema é que não poderia contar tudo. Na verdade, naquela hora, meu medo não me deixaria dizer absolutamente nada. Sabia do acidente. Sabia do coma. Sabia demais.
Segurei sua mão, e ela entendeu o que precisávamos fazer.
Levantamos, e a nossa única arma era aquela lanterna pesada. A bateria descarregada não permitiria iluminar mais nada, mas tinha peso suficiente para ser arremessada. Caminhamos pelo corredor ao lado, nos afastando em silêncio das meninas que ainda fitavam o elevador. Cada passo nos aproximava mais das conversas no quarto ao lado. Pela porta entreaberta, pudemos ver aqueles dois médicos. Um deles desligou o telefone, se apoiou na mesa empoeirada e confidenciou: não teríamos mais chances.
Entendemos finalmente que aquilo era um hospital. Ou um dia fora. As macas quebradas, extintores pelo chão, e o zumbido das luzes em azul.
Precisávamos de uma saída. Uma grade parecia guardar uma antiga saída de incêndio, e resolvemos tentar. Perto dali, uma menina que nos observava em um dos quartos sussurrou perguntando se poderia vir conosco. Logo éramos três. Cúmplices do medo.
Não consigo lembrar como conseguimos chegar ao térreo. Entre a sujeira do saguão de entrada, corpos deitados pelo chão eram as únicas testemunhas de que estávamos vivos. A menina que nos acompanhava foi a primeira a sair do prédio. Tão rápido ela pisou na rua, um grito: “Nãooooooooo!”.
Tudo se passou em uma única noite. Muitos anos depois de tudo. Tempo suficiente para entender que aquele era o lugar onde estivemos logo depois do acidente. O último lugar onde respiramos.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
Quem é você?
Se quiseres prender minha atenção por um bom tempo, guarde alguns mistérios sempre contigo. Deixe para mim o papel de ir descobrindo. A curiosidade é tipo aquela comida carregada de temperos. Sempre nos servimos de um pouco mais, mesmo sabendo que a sede vai piorar...
Aquela menina que corre todos os dias na redenção é assim. Ela passa indiferente, atenta aos passos que repete com um esforço constante de quem não está fazendo nada. Irritante de ver. Não importa se o relógio ali perto do monumento marque 8 ou 32 graus. Ela vai passar.
Também vai correr quando o céu se despede do dia em vermelho, ou naqueles em que a chuva transforma qualquer pisada num treino de trekking. Ela vai passar. Sempre igual. Sempre absurdamente diferente.
Tudo começou com um maldito sorriso. Um só, tímido, que ela deu ao passar pela segunda vez. Vocês podem dizer “Tá, por que não falaste com ela?”. Não falei, ponto. Não é questão de timidez, amadorismo. Simplesmente não queria falar com ela. O sorriso poderia ser a chave para uma troca de telefones, ou então, um simples gesto de simpatia pelo suor. Pelo esforço repetido para que a cada dia eu perca um pouco de mim.
Ainda hoje a cena se repete. Ela passa escondida atrás dos óculos de grau. Eu, dentro do Ipod. Ambos escolhemos nossas armaduras, pequenos mantos de invisibilidade. Quase como crianças, que ficam rindo debaixo da cama jurando que nunca serão descobertas. Passamos, sorrimos, seguimos.
O cotidiano se materializa como meu livro favorito. Não gosto de passar um dia sequer sem ler um pouco. Pessoas, prédios, árvores, vento, silêncio. Deixo a responsabilidade de desmentir minha imaginação para a única pessoa com este poder agora: a menina da redenção...
Aquela menina que corre todos os dias na redenção é assim. Ela passa indiferente, atenta aos passos que repete com um esforço constante de quem não está fazendo nada. Irritante de ver. Não importa se o relógio ali perto do monumento marque 8 ou 32 graus. Ela vai passar.
Também vai correr quando o céu se despede do dia em vermelho, ou naqueles em que a chuva transforma qualquer pisada num treino de trekking. Ela vai passar. Sempre igual. Sempre absurdamente diferente.
Tudo começou com um maldito sorriso. Um só, tímido, que ela deu ao passar pela segunda vez. Vocês podem dizer “Tá, por que não falaste com ela?”. Não falei, ponto. Não é questão de timidez, amadorismo. Simplesmente não queria falar com ela. O sorriso poderia ser a chave para uma troca de telefones, ou então, um simples gesto de simpatia pelo suor. Pelo esforço repetido para que a cada dia eu perca um pouco de mim.
Ainda hoje a cena se repete. Ela passa escondida atrás dos óculos de grau. Eu, dentro do Ipod. Ambos escolhemos nossas armaduras, pequenos mantos de invisibilidade. Quase como crianças, que ficam rindo debaixo da cama jurando que nunca serão descobertas. Passamos, sorrimos, seguimos.
O cotidiano se materializa como meu livro favorito. Não gosto de passar um dia sequer sem ler um pouco. Pessoas, prédios, árvores, vento, silêncio. Deixo a responsabilidade de desmentir minha imaginação para a única pessoa com este poder agora: a menina da redenção...
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
Areia e sangue
Eram 23h, as casas iluminadas pelas conversas e pelas risadas. Na pousada, alguns hóspedes que estavam ali há algum tempo foram convidados para se reunir na virada. Repetiriam todos os clichês do ano passado para reinventar o próximo. Não acredito tanto assim no poder da lentilha.
23h15 ela comenta que poderíamos ir para o Rosa, pela mesma trilha que fizemos alguns dias antes. Ok! Vamos! Bela idéia levar champanhe e taças... Logo no começo da caminhada, um pequeno tropeço, inevitável naquela escuridão, já fez meus pés sangrarem em vidro e areia. Minha sorte daquele ano finalmente se esgotara. Pelo menos não haveria lugar melhor. Emprestaria o poder de cura do sal e seguiria adiante.
A água gelada conteve o calor do sangue, e o corte parou. Na subida do morro, pela pequena trilha abraçada por arbustos e árvores que não reclamam da falta de terra, o que se ouvia é que não daria tempo, mas e daí? Chegaríamos um pouco depois, mas pelo menos longe dos pêssegos em calda. Cinco minutos para a meia noite, a praia do Rosa surge lotada, 37 músicas diferentes sendo ouvidas ao mesmo tempo, e a multidão esperando os fogos. Não para curtir as cores, mas para finalmente iluminar aqueles que até então eram apenas vultos.
Não demorou muito para que os fogos parassem, e uma catarse coletiva começasse. Acho que isso é o melhor do ano novo. Aquele breve momento onde qualquer problema desaparece. Onde o silêncio completa. Onde os desconhecidos se tornam finalmente humanos, e os abraços são gratuitos. Claro que pouco depois surge a saudade de quem tu gostarias de estar perto naquele momento. É quando a nuvem de pólvora se dissipa, e o céu cobre o mundo de estrelas.
É o momento que prova que religião não precisa de rótulo. Brilho os olhos para cima, uma reza desajeitada, torcendo para que, naquele momento, as mesmas estrelas estivessem refletidas nos teus.
Meia noite. Ano novo. Praia do Rosa.
23h15 ela comenta que poderíamos ir para o Rosa, pela mesma trilha que fizemos alguns dias antes. Ok! Vamos! Bela idéia levar champanhe e taças... Logo no começo da caminhada, um pequeno tropeço, inevitável naquela escuridão, já fez meus pés sangrarem em vidro e areia. Minha sorte daquele ano finalmente se esgotara. Pelo menos não haveria lugar melhor. Emprestaria o poder de cura do sal e seguiria adiante.
A água gelada conteve o calor do sangue, e o corte parou. Na subida do morro, pela pequena trilha abraçada por arbustos e árvores que não reclamam da falta de terra, o que se ouvia é que não daria tempo, mas e daí? Chegaríamos um pouco depois, mas pelo menos longe dos pêssegos em calda. Cinco minutos para a meia noite, a praia do Rosa surge lotada, 37 músicas diferentes sendo ouvidas ao mesmo tempo, e a multidão esperando os fogos. Não para curtir as cores, mas para finalmente iluminar aqueles que até então eram apenas vultos.
Não demorou muito para que os fogos parassem, e uma catarse coletiva começasse. Acho que isso é o melhor do ano novo. Aquele breve momento onde qualquer problema desaparece. Onde o silêncio completa. Onde os desconhecidos se tornam finalmente humanos, e os abraços são gratuitos. Claro que pouco depois surge a saudade de quem tu gostarias de estar perto naquele momento. É quando a nuvem de pólvora se dissipa, e o céu cobre o mundo de estrelas.
É o momento que prova que religião não precisa de rótulo. Brilho os olhos para cima, uma reza desajeitada, torcendo para que, naquele momento, as mesmas estrelas estivessem refletidas nos teus.
Meia noite. Ano novo. Praia do Rosa.
Caloi vermelha
Morar em apartamentos fez do carro o meu caminho para o jardim. Quando pequeno, odiei a troca de uma Variant por um Passat. Na Variant tinha um imenso playground acima do motor, que ficava atrás, onde uma coberta velha servia de piscina. Mergulhava em brinquedos, em imaginação. As casas passavam devagar pela janela. Podia fantasiar em como subiria naquela árvore, ou descobrir antes dos outros onde estava escondida a última criança a ser encontrada no esconde-esconde.
Não havia tantos acidentes, não havia cinto de três pontos, nem mesmo porta-copos. Os motoristas não eram multados por andar sem cinto, nem mesmo por abrir a térmica e servir um chá gelado para o filho brincalhão lá no fundo do carro. A Variant era imensa. Minha pracinha automotiva era o único motivo de aceitar viagens longas. Não me preocupava se faltava muito para chegar. O caminho era meu primeiro destino.
Costumávamos visitar meus avós paternos em Pantano Grande, um lugar que ainda não tinha luz elétrica, chuveiro, gás ou telefone. Ao menos na casa dos meus avós era assim. O piso de madeira esquentava no inverno, e mantinha a noite fresquinha no verão. Lá eu acordava com os sons mais nítidos da minha memória. O crepitar da lenha e a dança das panelas e chaleiras na chapa do fogão. Acordava com o perfume da minha avó paterna. O perfume de erva doce do único chá registrado em cartório. O chá da Vó Cema. As folhas e sementes de erva doce eram arrancadas cedo da manhã, e chegavam na cozinha ainda orvalhados. Eu achava que o pão também gostava daquele perfume. Fui saber adulto que as sementes encontravam o trigo antes de assar. Sempre pensei que o pão absorvia aquele gostinho por morar perto da chaleira.
Minha bicicleta não tinha marchas. Mas tinha um registro de torneira bem no meio, uma torneira branca que quando aberta dobrava a bicicleta ao meio. Uma Caloi vermelha. O barulho das molas do banco ajudavam a disfarçar a falta de óleo na correia.
Minha Caloi foi a responsável pelo elo com meu pai. Só poderia pedalar se meu pai estivesse por lá. A cada duas voltas na casa ele já aparecia na escada com sua maleta de ferro.
- Já furou?, perguntava ele.
- Ainda não!!
Na terceira volta ele nem perguntava. Já estava na sombra do cinamomo com a maleta aberta. Virava a bicicleta, recortava os remendos com perfeição e em poucos instantes já estava enchendo os pulmões do pneu de ar.
- Pronto!
- Brigado, pai!
Em pouco tempo o pneu voltava a furar. Meu pai não pensava duas vezes antes de sair da roda de chimarrão para mais uma cirurgia na borracha.
- Pronto! Agora cuida pra não furar novamente!, dizia ele sorrindo.
Ele mesmo sabia que eu não iria cumprir aquele pedido. Que logo estaria de volta, com o pneu lambendo o chão. No terceiro ou quarto remendo eu desistia. Deixava a bicicleta encostada na árvore recuperando o fôlego, e achava uma nova distração.
- Não vou mais andar de bici, tá pai?
Ele sorria aliviado, mas mesmo assim perguntava se eu não queria que ele arrumasse.
- Pode ser depois, pai.
Eu sabia que aquela noite, quando voltássemos para a capital, a bicicleta estaria novamente com os pneus cheios. Cheios de ar, remendos e histórias. Cheio como o meu peito ao falar do meu pai.
Não havia tantos acidentes, não havia cinto de três pontos, nem mesmo porta-copos. Os motoristas não eram multados por andar sem cinto, nem mesmo por abrir a térmica e servir um chá gelado para o filho brincalhão lá no fundo do carro. A Variant era imensa. Minha pracinha automotiva era o único motivo de aceitar viagens longas. Não me preocupava se faltava muito para chegar. O caminho era meu primeiro destino.
Costumávamos visitar meus avós paternos em Pantano Grande, um lugar que ainda não tinha luz elétrica, chuveiro, gás ou telefone. Ao menos na casa dos meus avós era assim. O piso de madeira esquentava no inverno, e mantinha a noite fresquinha no verão. Lá eu acordava com os sons mais nítidos da minha memória. O crepitar da lenha e a dança das panelas e chaleiras na chapa do fogão. Acordava com o perfume da minha avó paterna. O perfume de erva doce do único chá registrado em cartório. O chá da Vó Cema. As folhas e sementes de erva doce eram arrancadas cedo da manhã, e chegavam na cozinha ainda orvalhados. Eu achava que o pão também gostava daquele perfume. Fui saber adulto que as sementes encontravam o trigo antes de assar. Sempre pensei que o pão absorvia aquele gostinho por morar perto da chaleira.
Minha bicicleta não tinha marchas. Mas tinha um registro de torneira bem no meio, uma torneira branca que quando aberta dobrava a bicicleta ao meio. Uma Caloi vermelha. O barulho das molas do banco ajudavam a disfarçar a falta de óleo na correia.
Minha Caloi foi a responsável pelo elo com meu pai. Só poderia pedalar se meu pai estivesse por lá. A cada duas voltas na casa ele já aparecia na escada com sua maleta de ferro.
- Já furou?, perguntava ele.
- Ainda não!!
Na terceira volta ele nem perguntava. Já estava na sombra do cinamomo com a maleta aberta. Virava a bicicleta, recortava os remendos com perfeição e em poucos instantes já estava enchendo os pulmões do pneu de ar.
- Pronto!
- Brigado, pai!
Em pouco tempo o pneu voltava a furar. Meu pai não pensava duas vezes antes de sair da roda de chimarrão para mais uma cirurgia na borracha.
- Pronto! Agora cuida pra não furar novamente!, dizia ele sorrindo.
Ele mesmo sabia que eu não iria cumprir aquele pedido. Que logo estaria de volta, com o pneu lambendo o chão. No terceiro ou quarto remendo eu desistia. Deixava a bicicleta encostada na árvore recuperando o fôlego, e achava uma nova distração.
- Não vou mais andar de bici, tá pai?
Ele sorria aliviado, mas mesmo assim perguntava se eu não queria que ele arrumasse.
- Pode ser depois, pai.
Eu sabia que aquela noite, quando voltássemos para a capital, a bicicleta estaria novamente com os pneus cheios. Cheios de ar, remendos e histórias. Cheio como o meu peito ao falar do meu pai.
domingo, 6 de fevereiro de 2011
Fora das gavetas
Andei levando um fora daqueles que não esperava nunca levar. E o problema é que, desta vez, a culpa foi totalmente minha. Não costumo arriscar nada que não tenha o mínimo de possibilidade. Isso se chama burrice. Mas, da mesma forma, tendo uma boa corda amarrada na cintura, sou capaz de me jogar de uma ponte, só para curtir aquela sensação de que o dia valeu a pena. Tente fazer isso sem a corda que eu serei o primeiro a rir da tua cara.
Voltando ao fora: subestimei minha imaginação. Achei que tinha tudo sob controle, ela chegou e resolveu provar que eu estava errado. Colocou limites ainda maiores que os meus. Uma rasteira.
O fato é que sempre organizo as idéias no método “gaveta das contas”. Jogo todas que foram pagas ali, sem ordem, sem cuidado, mas ali, no mesmo lugar de sempre. O problema é quando alguém de fora chega e tenta organizar esta gaveta, conta por conta, data por data. Melhor seria se queimasse tudo de uma vez!
Sem saber mais onde estão minhas idéias, viro um andarilho sem fome. Sem objetivo. O fora que eu mesmo criei foi a única conta que eu precisei depois de paga. Precisava conferir os valores, o consumo, o vencimento. Se eu jogar tudo no chão e procurar com calma, sou capaz de achar. Mas quantos de nós tem a coragem de expor tudo assim, de uma vez só, virar a gaveta no chão e relembrar de coisas que o tempo já merecia por usucapião?
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